Brinquedo de menino e de menina

“Trouxe para o parquinho, o brinquedo é de todo mundo”. Falei essa frase em tom de brincadeira para uma babá que cuida de uma criança aqui no condomínio quando ela perguntou de quem era o super-herói “de menino” que uma criancinha tinha acabado de colocar as mãozinhas gorduchas e levar com entusiasmo em direção à boca. O boneco era de Luca, e para quem pensa que não existe mais essa diferenciação entre brinquedo de menino e de menina, ainda temos muito trabalho pela frente!

Brinquedo de menino e de menina: é meu!

Toda criança tem aquela fase do “é meu!” em relação aos brinquedos. Não precisa ser mãe, psicólogo ou educador infantil para saber disso, basta ter ou ter tido contato com crianças em algum momento da vida para concordar com o fato. Como mãe que acompanha de perto as brincadeiras de Luca e convive com outras crianças, vejo o quanto é normal esse sentimento de posse em relação aos brinquedos, demonstrado em maior ou menor grau dependendo da personalidade de cada criança.

Não tenho a pretensão de educar as crianças do prédio, quiçá do mundo, sobre a importância de dividir seus pertences com os amiguinhos, dei aqui o exemplo que aconteceu no condomínio em que moramos porque aqui existe um acordo implícito, silencioso e cordial entre pais e babás de que os brinquedos que as crianças trazem para o parquinho estão à disposição de quem quiser brincar. É claro que sempre tem um que chora quando vê que o amiguinho pegou seu boneco; o que quer andar no seu carrinho (até então ignorado) exatamente na hora em que outra criança se sentou nele; e aqueles que enchem os pulmões e soltam o ar em forma de um grito ensurdecedor para fazer valer a sua posse; mas, no geral, a regra funciona.

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Menino não pode!

Embora este texto esteja enveredando para a partilha de brinquedos, o ponto que quero abordar é aquela divisão tácita, porém óbvia, de brinquedo de menino e de menina. Nesse mesmo playground que citei no início do texto, numa tarde qualquer, Luca viu uma bonequinha jogada em um dos bancos e a pegou. Na época ele devia ter 1 ano e 4 meses e lembro claramente do olhar chateado da menina, a dona da boneca, ao ver que Luca estava mexendo nos seus pertences. E com mais clareza ainda lembro da mãe da menininha dizer que ela deveria deixar Luca brincar, pois tinha que partilhar seus brinquedos com as outras crianças. Antes que pudesse agradecer, porém, paralisei ao ouvir “Ele é menino, ele não vai brincar com a boneca. Meninos não brincam de boneca”.

Atribuição de gênero: a culpa é nossa

“São os adultos, a escola, e os cuidadores que atribuem conceito de gênero desde a montagem do quarto do bebê que irá chegar até os presentes recebidos durante seu crescimento. Por exemplo: quando a mãe decide usar a cor rosa para a menina e a cor azul para o menino ela está reforçando a oposição binária masculino – feminino praticada e reproduzida cultural e socialmente”, comenta a Dra. Juliana Benevides, Psicóloga e Coach de Excelência. “O brincar é um ato que nasce espontaneamente, não se nasce sabendo brincar, se aprende. E esse ato de aprendizagem deve iniciar com a desconstrução de que os brinquedos tem papéis sexuais, ou seja, menina brinca com boneca e menino brinca com carro. Sair dessa lógica imposta é o que fará seus filhos perceberem que podemos ter futuros homens atuando com funções domésticas e mulheres trabalhando fora do lar”, completa a psicóloga.

Apesar de nunca ter comprado uma boneca para Luca, eu nunca disse para o meu filho que ele não poderia brincar com uma e não acho salutar fazer alarde para essa atitude, que ao meu ver é absolutamente normal e faz parte da curiosidade e do desenvolvimento de qualquer criança. Posso até contar nos dedos de uma mão só as vezes em que Luca preferiu uma boneca ao Woody, às Tartarugas Ninjas ou ao Homem-Aranha, e se preferiu – e aí me perdoem as pessoas machistas – por mim tudo bem.

E se ele virar… gay???

Outra vez, no mesmo parque, Luca pegou uma boneca novamente. Dessa vez uma Barbie, e isso foi apenas algumas semanas atrás, ele com 1 ano e 9 meses. Na hora, alguns adultos que estavam por perto arregalaram os olhos e olharam para mim com aquela cara de “você não vai fazer nada?”. Eu dei risada.

Ainda que não seja uma estudiosa sobre o assunto, não acredito que a sexualidade de uma pessoa esteja ligada à curiosidade por um brinquedo ao qual ela tem acesso na infância. A reprimenda, por outro lado, acho extremamente nociva. Essa visão deturpada dos pais que agem conforme uma imposição da sociedade é o que limita o desenvolvimento, limita o espaço de descobertas, a liberdade de explorar e a experiência que vem em consequência da curiosidade. A Dra. Juliana Benevides complementa ainda que “é através das brincadeiras que os processos de socialização e formação de identidade são construídos, mas não formam uma identidade fixa e imutável, já que os sujeitos modificam-se naturalmente dentro do seu processo de desenvolvimento humano. A estereotipia dos brinquedos vêm dos pais e das pessoas que permeiam o espaço de brincadeira das crianças”.

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Homem é quem manda, lugar de mulher é na cozinha

“Tive uma criação muito rígida, meu pai era militar e criou os filhos com aquela mentalidade de que lugar de mulher é na cozinha, homem é que é o provedor e pode tudo. Foi um choque para ele quando a minha filha Sarah, na época com uns 6 ou 7 anos, deu um show jogando futebol na granja com os primos”, conta Luísa Santos, psicóloga e mãe de Sarah, hoje com 10 anos. “Ele chamou meu marido para conversar e disse que aquilo não era brincadeira para uma mocinha. Que ela deveria estar brincando de bonecas, de casinha, deveria ir para perto das primas. A Sarah nunca gostou dessas brincadeiras “de menina”, e eu e o meu marido nunca a forçamos a brincar ou a gostar de algo que não fosse escolha dela”.

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Essa restrição do que pode e não pode, de impor o que é brinquedo de menino e de menina, além de restringir a liberdade de descobertas das crianças, pode acabar formando personalidades difíceis e criando expectativas desnecessárias no papel que elas devem cumprir na sociedade. Essa realidade social não se muda do dia para a noite, já que a mídia e a própria sociedade agem em prol de manter esse significado.

“Brinquedo é brinquedo, tem várias utilidades, possibilidades. Permita que seu filho exerça a criatividade de fazer diferente, de experimentar, de gostar ou não do brinquedo, mas não imponha, não reproduza a lógica opressora de não permitir, de punir ou de ironizar. Brinquedo não tem sexo, e a educação, construída através do ato livre de brincar, pode produzir uma sociedade mais igualitária e justa, diminuir os preconceitos e facilitar o exercício da liberdade de escolha”, finaliza a Dra. Juliana Benevides.

Crédito das imagens: Shutterstock

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10 comments Add yours
  1. Criança não tem a mínima ideia do que é de menino ou menina
    Nós, adultos é que determinamos isso!
    Arthur tem 01 aninho e eu jamais vou instruí-lo a escolher um brinquedo por ele ser menino! Meu marido é super machista mas eu já bati o pé e não vou criar meu filho como um homem das cavernas. Ele é criança e vai brincar com o q lhe agradar!

    1. É muito natural, né? Hoje mesmo eu estava contando pra minha sogra como as brincadeiras de Luca são brutas, ele se joga em cima de mim e tenta me puxar, segura minha cabeça pra eu tombar pra trás… Bem coisa “de menino” mesmo, mas nem eu e nem meu marido ensinamos pra ele q tem q ser assim. Por isso não acho o fim do mundo ele pegar uma boneca, ele está descobrindo, e se ele decidir q gosta, então que brinque feliz.

  2. Ótimo post, Ana!
    Isso é tão discutido por nós, professores.
    O ideal é entender que precisamos de respeito a diferença. Tirar o “ou” do discurso: ou você é homem ou é mulher. Isso é difícil de repassar aos pais nas escolas públicas, mas se não tentarmos, nunca conseguiremos esse tipo de posição.
    Beijos

    1. Diise, um dia desses aqui mesmo no prédio um menino estava chorando, acho q ele tem uns 9 ou 10 anos, e uma pessoa q é mãe de um menino da mesma faixa etária disse pra ele: “tá chorando pq? Para com isso, homem não pode chorar”. Tá vendo pq é difícil? Pq essa segregação começa na base mais importante.

  3. Olá,

    Também penso que os brinquedos são unissex. Não vejo como qualquer tipo de brinquedo possa interferir numa escolha sexual no futuro…

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